"O evangelho segundo Jesus", Rainha do céu está mantida em Porto Alegre, sendo que a mesma foi suspensa em Jundiaí pela justiça. O juiz José Antônio Coitinho negou o pedido de um advogado

Em quinta, 21 de setembro de 2017 as ⌚ 10h04 | Atualizado quinta, 21 de setembro de 2017 as ⌚ 21h48
  

 “O evangelho segundo Jesus”, Rainha do céu está mantida em Porto Alegre-RS, sendo que a mesma foi suspensa em Jundiaí-SP pela justiça. O juiz José Antônio Coitinho negou o pedido de um advogado, que entrou com ação pelo cancelamento das apresentações do espetáculo, em que Jesus Cristo é vivido por uma atriz transexual, na capital gaúcha.

Escrito pela autora trans inglesa Jo Clifford, a peça traz a atriz trans Renata Carvalho no papel de Jesus e causa cisma em torno de questões de gênero. Boa parte do festival Porto Alegre em Cena, promovido pela prefeitura local, o espetáculo tem sessões marcadas para quinta (21) e sexta (22), no teatro Bruno Kiefer, da Casa de Cultura Mario Quintana. Segundo informações os ingressos já estão todos esgotados.

Visão do advogado:

O advogado Pedro Geraldo Cancian Lagomarcino Gomes, entrou com uma ação alegando que o espetáculo, que em sua visão afrontaria “os costumes religiosos”, usa recursos públicos por meio do Pró-Cultura. Na decisão proferida na tarde de terça, o juiz José Antonio Coitinho, da 2ª Vara da Fazenda Pública, em Porto Alegre, negou o pedido.
“um verdadeiro escárnio, um deboche psicodélico de mau gosto, haja vista que subverte questões religiosas e macula o sentimento do cidadão comum, avesso a esse estado de coisa”. O advogado pedia a suspensão em caráter liminar e depois o cancelamento definitivo com base nos artigos 208 e 287 do Código Penal e no artigo 20 da lei 7.716/89. O artigo 208 do Código Penal fala sobre “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”.


Visão do juiz:


"Não se pode simplesmente censurar a peça ‘O evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu’ sob argumento de que estamos em desacordo com seu conteúdo. A liberdade de expressão tem de ser garantida – e não cerceada – pelo Judiciário. Censurar arte é censurar pensamento e censurar pensamento é impedir desenvolvimento humano".

"A peça (...) propõe – fato notório – uma reflexão sobre o preconceito que recai sobre orientações sexuais das pessoas. A atriz e travesti Renata Carvalho corporifica figura religiosa no tempo presente, com o que não pratica ilícito algum. Se a ideia é de bom ou mau gosto, para mim ou para outra pessoa, pouco importa".

Atriz e ativista Renata Carvalho

Atriz e ativista Renata Carvalho | Foto: Ligia Jardim / Divulgação



LEIA A DECISÃO DO JUIZ NA ÍNTEGRA


Há que ser indeferido o pedido liminar.
Não se pode simplesmente censurar a peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, sob argumento de que estamos em desacordo com seu conteúdo. A liberdade de expressão tem de ser garantida – e não cerceada - pelo Judiciário. Censurar arte é censurar pensamento e censurar pensamento é impedir desenvolvimento humano.
O crime e a imoralidade que fere têm de ser oprimidos pelo julgador. A liberdade preservada.
A peça, que possui texto de Jo Clifford, dramaturga transgênero escocesa, propõe - fato notório - uma reflexão sobre o preconceito que recai sobre orientações sexuais das pessoas. A atriz e travesti Renata Carvalho corporifica figura religiosa no tempo presente, com o que não pratica ilícito algum. Se a ideia é de bom ou mau gosto, para mim ou para outra pessoa, pouco importa.
Ao juiz é vedado proibir que cada ser humano expresse sua fé – ou a falta desta – da maneira que melhor lhe aprouver. Não lhe compete essa censura.
Há pouco tempo, assistimos ao assassinato de cartunistas franceses do Charlie Hebdo, que satirizaram questões religiosas. Na essência, foram censurados. Censurados por expressar sua maneira de pensar.
Não, ao juiz não compete censurar a fé ou sua ausência.
A alegada questão da sexualidade de personagens, imaginada para o espetáculo, é absolutamente irrelevante. Transexual, heterossexual, homossexual, bissexual, constituem seres humanos idênticos na essência, não sendo minimamente sustentável a tese de que uma ou outra opção possa diminuir ou enobrecer quem quer que seja representado no teatro.
Não se está a defender que é correta a total liberdade de escolha sexual e muito menos a condenar essa postura. Defendemos a liberdade de escolher, de toda pessoa escolher, de acordo com sua evolução, o que fazer de sua vida, em todos os aspectos, mantido o respeito pelo seu semelhante.
Preciso é, de pronto, dizer que, gostemos ou não, a famigerada peça é, sim, uma obra de arte. Neste aspecto, dentro da subjetividade inerente ao tema, possível arriscar que erra o autor quando afirma "isso não é arte".
Antes da estreia na capital gaúcha, já está aflorando paixões. Ódio, parece já ter despertado.
O que melhor consistiria em arte do que a obra que toca, acaricia ou fere, os sentimentos humanos? O ajuizamento da presente demanda e as angústias que vertem da inicial são a prova contundente de que, de arte, estamos a falar.
Claro que, como tal, está sujeita a toda crítica e o processo judicial a critica duramente.
Não estamos falando de encenação que será transmitida em televisão aberta. Tampouco em televisão a cabo. Nem em rádio serão ouvidas as falas dos artistas. Não vai invadir nossas casas e atormentar o imaginário de nossos filhos ou vilipendiar a moral dos idosos.
Trata-se de espetáculo – funesto ou abençoado – que terá lugar em ambiente fechado, cujo ingresso demandará despender dinheiro, não sendo permitida a entrada de pessoas com idade inapropriada. Na ficha técnica consta "classificação: 16 anos". A nossos filhos em tenra idade não alcançará, a não ser que assim desejemos e para tanto diligenciemos. Não há falar em agressão à cultura ou à formação do caráter de quem quer que seja.
No popular, diríamos, irá quem quiser ver.
E, sem citar um único artigo de lei, vamos garantir a liberdade de expressão dos homens, das mulheres, da dramaturga transgênero e da travesti atriz, pelo mais simples e verdadeiro motivo: porque somos todos iguais.
"Je suis Charlie".